Desde que descobriu ser portador do vírus HIV, há 22 anos, o ex-professor de educação física Aguinaldo José Gomes toma, todos os dias, o coquetel de medicamentos que mantém seu organismo resistente à doença. Na época do diagnóstico, ele morava havia quatro anos em Lisboa, onde estudava literatura. Depois de ter descoberto ser soropositivo, o então bolsista ainda ficou um ano na capital portuguesa recebendo a medicação gratuitamente. "Mas depois desse tempo fiquei psicologicamente abalado e senti saudade. Eu queria colo, a minha terra, a minha família", lembra.
Em 1990, Aguinaldo voltou ao Brasil. Naquela época, a aids era uma doença sobre a qual ainda havia poucas informações. O medo era inevitável. "Eu estava perto dos 30 anos de idade e tive que lidar com a morte numa fase produtiva da vida", conta.
A angústia tornou-se ainda maior quando ele descobriu que, por causa dos medicamentos que vinha tomando, seu organismo não se enquadrava no protocolo à época estabelecido no Brasil para acesso gratuito à medicação. "Aí eu comecei outra luta: convencer os médicos a me receitarem os medicamentos", contou Aguinaldo, hoje com 51 anos de idade, ressaltando que naquela ocasião começou a vida de ativista na luta contra a aids.
De lá para cá, no entanto, muita coisa mudou no Sistema Único de Saúde brasileiro, o chamado SUS, com relação ao atendimento a portadores do HIV. Hoje, as autoridades do país destacam com orgulho que o programa brasileiro é apontado como referência pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/Aids (Unaids). Segundo divulgou o Ministério da Saúde nesta segunda-feira (28/11), a prevalência da doença – estimativa de pessoas infectadas – permanece estável em 0,6% da população brasileira.
O país investe por ano 1,2 bilhão de reais no combate à doença, em ações que vão desde entrega de medicamentos e assistência aos soropositivos até a realização de testes, campanhas publicitárias e distribuição de preservativos.
Aplicação eficiente de recursos
Um dos pontos altos do programa brasileiro é o acesso universal aos medicamentos de combate ao HIV. O país foi um dos pioneiros a distribuir, gratuitamente, toda a medicação necessária para o combate ao vírus – um investimento que, este ano, chegará a 846,7 milhões de reais. De acordo com diretor do Departamento de DST/Aids do Ministério da Saúde, Dirceu Greco, 97% dos brasileiros diagnosticados com aids – ou seja, 215 mil pessoas – recebem os 20 medicamentos atualmente usados no tratamento no Brasil.
Greco conta que, destes, 10 são produzidos nacionalmente, sendo um deles por meio de quebra de patente, em 2007. "Eu teria que desembolsar de 6 a 8 mil reais por mês com medicamentos se tivesse que pagar por eles", calcula Aguinaldo Gomes. Cada exame de genotipagem – que ele precisa fazer três vezes por ano para verificar se seu organismo desenvolveu resistência a algum dos medicamentos – custaria, em média, 2,5 mil reais.
O diretor da Unaids no Brasil, Pedro Chequer, ressalta que um relatório divulgado pelo órgão aponta que o governo brasileiro foi muito mais eficiente do que o da Rússia, por exemplo, na aplicação dos recursos no combate ao HIV. Segundo o relatório, os 600 milhões de dólares aplicados pelo Brasil durante todo o ano de 2008 foram mais bem direcionados que os 800 milhões investidos pelos russos no combate à aids no mesmo período.
"A Unaids conclui efetivamente que o Brasil tem um modelo estratégico bastante adequado do ponto de vista da realidade do país, pois visa otimizar a utilização dos recursos, concentrando seus esforços nas populações mais vulneráveis", afirmou o diretor.
Testes durante a Copa
Segundo Chequer, no entanto, ainda há lacunas no programa brasileiro que precisam ser preenchidas. Entre elas, as diferenças regionais no acesso a informações. "Muitos municípios das Regiões Norte e Nordeste do país ainda não têm acesso ao diagnóstico mais rápido, ao tratamento da doença e a ações mais efetivas de prevenção", destaca o diretor.
Considerando a estimada parcela da população que ainda desconhece estar contaminada pelo HIV, por não ter realizado o teste – entre 200 e 230 mil pessoas – a cobertura do tratamento gratuito cairia dos 97% para algo entre 60% e 79%.
"O grande desafio hoje do Brasil é ampliar o acesso ao diagnóstico para que se possa, até 2015, chegar a mais de 80% de cobertura (de todos os infectados)", avalia Chequer, ressaltando que esse índice já é registrado hoje por países como Botsuana, Chile e Cuba.
O ministério garante que um dos principais objetivos da política nacional de combate ao HIV em 2012 será elevar o índice de diagnósticos precoces. "Este hoje é o foco no mundo inteiro", afirma Greco. Segundo ele, o governo deve ampliar a quantidade de locais para realização de testes rápidos – cujo resultado sai em 30 minutos.
O diretor explica que atualmente os exames são oferecidos em locais públicos, especialmente em datas festivas como o Carnaval, paradas de orgulho gay e no Dia Mundial de Combate à Aids, em 1º de dezembro. O ministério também planeja oferecer testes gratuitos aos torcedores durante a Copa do Mundo de 2014, que acontecerá no Brasil. "Neste ano, foram realizados mais de 3 milhões de exames rápidos e a meta é alcançar mais de 7,5 milhões de testes no ano que vem", afirma.
O presidente da ONG Pela Vidda, Mário Scheffer, calcula que cerca de 45% das pessoas diagnosticadas estão chegando tardiamente ao serviço de saúde e não se beneficiam do acesso à medicação. "É preciso ampliar a testagem e o número de beneficiados pelo tratamento. Apesar dos esforços, 12 mil pessoas ainda morrem todos os anos de Aids no Brasil".
Parceria com a África
O programa brasileiro também estabeleceu diversas parcerias com países das Américas do Sul e Central, assim como da África, para troca de informações sobre tratamento e prevenção do HIV. De acordo com o ministério, o Brasil doa medicamentos para 26 países, entre eles os vizinhos Argentina, Bolívia, Chile, e alguns africanos que registram altos índices de soropositivos, como Botsuana, Quênia e Zâmbia.
Por meio da parceria com Moçambique, o governo autorizou a transferência de tecnologia para a construção de uma fábrica de medicamentos antirretrovirais em Maputo. "É uma troca. Também aprenderemos com eles a lidar com situações mais complexas do que as nossas", afirma Greco. Ele conta que a pré-produção de medicamento na capital moçambicana deve começar já no próximo ano.
Falhas no abastecimento
Apesar de considerado modelo em âmbito internacional, internamente o programa brasileiro de combate ao vírus HIV recebe críticas de ativistas de organizações que prestam apoio a portadores da doença. Segundo eles, uma grande dificuldade encontrada pelos pacientes são as falhas no abastecimento de medicamentos.
"O governo ainda não tem uma estrutura que garanta continuidade na compra dos medicamentos, há sempre problemas no processo burocrático. Isso prejudica o tratamento", critica Rodrigo Pinheiro, presidente do Fórum de ONGs/Aids de São Paulo. Ele conta que, no ano passado, houve falta de uma medicação nos estoques do SUS durante quatro meses. Dirceu Greco admite as falhas e garante que o governo estuda maneiras de vencer a burocracia e evitar o desabastecimento temporário.
Mário Scheffer defende ainda que o Brasil retome a política de quebra de patentes e amplie a produção nacional de genéricos. Ele ressalta que uma das estratégias do Brasil para conseguir oferecer medicamento a tantos soropositivos foi a produção nacional de antirretrovirais. "A política tem sido pouco transparente, o Brasil está pagando muito caro pelos medicamentos que produz", reclama.
Apesar das críticas, no entanto, os ativistas que apoiam portadores de HIV e lutam por seus direitos elogiam o pioneirismo brasileiro ao estabelecer por meio de lei, há 15 anos, que todos os infectados teriam acesso gratuito a tratamento."A garantia em 1996 do acesso ao tratamento de forma gratuita foi a maior conquista desses 30 anos da epidemia no Brasil", diz Pinheiro.
Para Aguinaldo Gomes, o acesso gratuito à medicação e a adesão ao tratamento foram essenciais para ele superar a doença e continuar a fazer planos. "Esperei a morte chegar uma semana, um mês, três meses. Vi que ela não chegava. Então comecei a viver. E há 22 anos a morte não chega."
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