À beira do rio Douro, na cidade do Porto, saboreio lentamente um bolinho. De bacalhau, claro. Contenho meu ímpeto de devorá-lo de uma só vez em busca de um prazer mais prolongado. Prazer de receber o vento quente do verão portuense e observar as pequenas embarcações que esse mesmo vento embala. Paro. Concentro-me no bolinho. Meio sem gosto. Penso nas iguarias dos botequins portugueses do Brasil e me frustro. Mais uma mordida. Dessa vez despretensiosa. Com os olhos e os outros sentidos atentos, começo a flanar sem sair do lugar. A frustração se desfaz. E, para minha surpresa, o tira-gosto torna-se um deleite. O paladar se transforma quando se une a beleza velha daqueles prédios. O aroma que vem da cozinha se mistura ao cheiro do rio que é quase mar. O bolinho supera o bolinho. A singularidade da experiência se evidencia.
Em um primeiro momento parece óbvio: tudo o que está a nossa volta interfere na percepção que temos das coisas. Por analogia, penso no universo da arte e percebo que, muitas vezes, a arte toma outros rumos. Temos uma tendência racional a distinguir, a querer renunciar às percepções periféricas. Tendemos a achar que a música é só para os ouvidos ou que uma pintura é só para os olhos. Um músico, na maioria das vezes, desconhece os princípios mais elementares do tratamento das cores e formas, ou mesmo algumas noções de história da arte. Um artista plástico, por sua vez, raramente está habituado aos sistemas e ordens musicais. Isso não quer dizer que eles não sejam sensíveis à arte vizinha. Nem que sua criação artística esteja comprometida, evidentemente.
O que fica claro é que, quando separamos os sentidos, corremos o risco de limitar nosso alcance sensorial e empobrecer a experiência, seja ela qual for. Isso me faz pensar em Kandinsky e na sua crença de que a pintura e toda forma de arte sempre se dirige aos cincos sentidos (Do Espiritual na arte, Martins Fontes). Mais tarde, a fenomenologia de Merleau-Ponty defendeu que todos os sentidos são poderes de um mesmo corpo integrados em uma única ação. As interferências, seja nas esferas da criação, da execução ou da percepção, vão além das metáforas e analogias. Tornam-se realidades.
O cinema pode ser um bom exemplo disso. Os diálogos imagem-som às vezes superam o evidente e interferem de maneira decisiva na sua percepção. Duas cenas me vêm de imediato: as primeiras imagens de Persona de Bergman e a cena da galinha no início de Cidade de Deus. Sem o som, os olhos não entendem o que vêem. Esses são casos extremos. De qualquer forma, toda arte é dirigida para todos os sentidos, mesmo que exista uma racional tendência a negar tal fato.
Essas curtas reflexões são, na verdade, apenas um convite ao leitor à construção de uma nova maneira de perceber a arte. Um convite a sentir a unidade das sensações e a sugestiva importância da interpenetração dos sentidos.
Alexandre Freitas é pianista e musicólogo graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre pela Universidade de Toulouse. Alexandre Freitas faz doutorado em Música na Universidade de São Paulo e na Sorbonne, em regime de dupla titulação. Sua tese gira em torno das convergências entre estéticas musicais e visuais. A coluna Visões Musicais é um espaço de reflexões livres sobre músicas, músicos e arte, de maneira geral.
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