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quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Comida de escravo


Escravos trazidos ao Brasil vieram primeiro da Guiné, para as capitanias de São Vicente e São Tomé. Por conta disso passou “Guiné” a ser designação genérica dada a todos os africanos. Mesmo àqueles chegados depois, de outros lugares. Os de Angola, Luanda e Moçambique, iam para Pernambuco, Rio de Janeiro e Salvador. Eram de grupo banto – benguelas, congos (ou cabindas) e ovambos. No século 18, passaram a vir também da Costa da Mina (hoje, Benin); eram bornus, ewes (ou jejes), hauçás, iorubás (ou nagôs), minas, tapas. Do porto iam a locais reservados para quarentena. Os de Pernambuco, levados a Santo Amaro das Salinas (atual Igreja de Santo Amaro, perto do cemitério dos ingleses). Ficavam em galpões onde recebiam tratamento médico e um farnel, chamado “carapetal” – milho fresco ou assado e farinha de mandioca; frutas, para combater o “mal-de-luanda” (escorbuto); e tabaco – para prevenir malária e, assim se acreditava, para estimular a circulação e proteger os pulmões. 

Cumprida a quarentena, seguiam para ser vendidos, onde estavam os grandes comerciantes de escravos. Sobretudo judeus. A rua em que residiam (“do Bode”), não por acaso logo acabou conhecida como “dos Judeus”. Depois, com a partida destes no fim do domínio holandês, rua “da Cruz”, “dos Mercadores” e, finalmente, do “Bom Jesus”. Os próprios escravos preparavam suas refeições, no meio da rua, em grandes caldeirões – carne salgada, farinha de mandioca, feijão e às vezes banana. Fim de tarde eram recolhidos e trancados em grandes armazéns – para que não fugissem ou fossem roubados.

Eram trocados por açúcar, aguardente ou tabaco de terceira categoria. Senhoras de engenho também se davam ao prazer desse comércio. “Vão enfeitadas, sentam-se, manipulam e examinam suas compras, e levam-nas embora com a mais perfeita indiferença, como se estivessem comprado um cão ou uma mula”, escreveu o reverendo inglês Robert Walsh (Notícias do Brasil, 1828). O lugar de origem dos escravos influenciava nessa escolha. Os da Costa do Ouro eram apreciados por serem considerados mais bonitos e mais conformados; os de Angola, hábeis e mais trabalhadores; os da Guiné, dados aos serviços domésticos; os de Benguela e Cabinda, próprios para a dureza do trabalho agrícola; os de Moçambique, fracos e pouco inteligentes; os do Gabão, ferozes e maus. Por conta disso, chamar negro de “Gabão” era ofensa grande. Esses escravos eram também classificados pelo grau de domínio da língua portuguesa – boçais (os que não conheciam o português), ladinos (que já falavam um pouco o idioma) e crioulos (filhos brasileiros de mães escravas, que dominavam bem a língua). 

Escravos homens eram destinados aos trabalhos pesados. Nas cidades carregavam barris de dejetos, baús, caixas, comidas, lenhas, madeiras, móveis, pedras, pianos ou terra. Transportavam cadeirinhas, canoas, liteiras e redes, em que senhores passeavam. Ajudavam na construção de casas como ferreiros, marceneiros ou pedreiros. E serviam, também, como “moleques de recado”. No campo derrubavam a mata, preparavam a terra, plantavam e moíam cana. Eram também artífices, caldeireiros, ferreiros, marceneiros, oleiros, pedreiros, pescadores, remeiros e vaqueiros. Alguns, conquistando a confiança de seus patrões, acabaram exercendo ofícios de capatazes, feitores e até carrascos de outros negros. Nas casas-grandes dos engenhos foram capangas, domésticos, guarda-costas, pajens, “as mãos e os pés dos senhores de engenhos”, segundo o jesuíta italiano Antonil (Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, 1711). Tudo dependia deles – “se os casarões remanescentes do tempo antigo parecem inabitáveis devido ao desconforto é porque o negro está ausente. Era ele que fazia a casa funcionar... o negro era esgoto, era água corrente no quarto, quente e fria, era interruptor de luz e botão de campainha; o negro tapava goteira e subia vidraça quebrada, era lavador automático, abanava que nem ventilador”, segundo palavras do arquiteto Lúcio Costa. 

Escravas, sobretudo as mais limpas, bonitas e fortes, iam para as casas-grandes dos engenhos. Essas “mucamas” faziam todos os serviços da casa – arrumavam, costuravam, lavavam roupa, limpavam, passavam. Ajudavam suas donas a tomar banho e a se vestir. Também cuidavam das crianças. Eram suas amas-de-leite – que senhoras de posse não se davam aos incômodos de amamentar e trocar fraldas sujas. Também serviam aos senhores em suas camas, nas horas vagas, com o vigor daquelas carnes duras e morenas. Certo Dr. João de Azevedo Macedo Jr. chegou a dizer que “para o sifilítico não há melhor depurativo do que uma negrinha virgem”. Mas foi sobretudo na cozinha que se destacaram. Isso aconteceu na América do Sul, apenas, rompendo a segregação absoluta que marcou a colonização produzida pelo resto da Europa. Tanto assim era que notícias dessas intimidades domésticas causavam imensas desconfianças na corte. O cozinheiro de D. Pedro II (de Portugal, claro, que o nosso nem rei foi), Domingos Rodrigues (1680), advertia “a todos os Senhores, que de modo nenhum consintam nas suas cozinhas, a negros, mulatos ou qualquer cozinheiro que de sua criação ou inclinação for vil... porque hão de comer com muito pouca limpeza, e com muito risco na sua saúde, que assim me tem mostrado a experiência de muitos anos, e o exercício dessa minha Arte”.

Mucamas cozinheiras trouxeram hábitos alimentares de sua terra distante. Muitos deles, pelas limitações e dificuldades, ficaram apenas guardados na memória. Para aquela gente, caçar era ofício, divertimento e razão de orgulho. Conferia dignidade ao congo (caçador). E caçavam de tudo: ave, bode, búfalo, carneiro, crocodilo, girafa, hipopótamo, javali, lagarta, lebre, porco (selvagem), roedores em geral, tatu, zebra. Apreciavam também cães, cuidadosamente engordados para serem depois assados ou cozidos. Desses animais comiam tudo “com exceção dos miolos em que não se tocam” (Jean de Léry, 1578). Pescavam com arpão, flecha e luana (rede). Preferiam peixes salgados e secos, primeiro no fogo e depois no sol. Carnes eram usualmente preparadas na brasa, na grelha – diretamente sobre o fogo ou envolvidas em couro (de animal) ou folhas de bananeira. Também cozidas. Mas nunca se misturavam, na mesma panela, carnes e legumes. Sabiam ainda cozinhar no vapor e fazer defumados. Apreciavam o alimento dissolvido – pirões, papas de fécula e farinha de sorgo, que acreditavam dar mais sustança. Tudo temperado com muita pimenta. Como acompanhamento muito arroz. Sempre. Também jiló e quiabo. Gostavam de inhame – assado, cozido, transformado em farinhas, acompanhando carne ou peixe. Além de frutas. Sobretudo melancia e banana.

Alguns escravos eram capazes de comer até um cacho, por refeição. Não usavam sal. Nem açúcar. E se divertiam tomando bebidas fermentadas – feitas de mel de abelha, sorgo ou de dendê – emum, malfu, sura, vinho de palma.

Aqui tiveram, esses escravos, que aprender novos hábitos. Passaram a viver em senzalas, construídas perto das casas-grandes. Eram de taipa de pau-a-pique, cobertas com palha ou telhas feitas no próprio engenho. Sem janelas. 

Por dentro, cubículos conjugados davam para uma grande galeria comum. Nessas senzalas, aprenderam a substituir ingredientes de suas receitas originais pelo pouco que lhes davam. Pimentas africanas (“zingiberáceas” e “piperáceas”), pelas nativas (capsicum). Mancarra, por amendoim. Inhame, por mandioca. Banana, por pacova – embora preferissem as de sua terra distante, pela acidez do tanino dessas pacovas. Melancia por abacate, abacaxi, abiu, caju e goiaba. Peixes secos, por frescos. Grandes animais por capivaras, cobras, cutias, jacarés, lagartos, preás, porco selvagem, tatus, tartaruga. E insetos – besouro, cupim, formiga, gafanhoto, tanajura, tapuru. 

Aprenderam também a substituir sorgo por milho – durante séculos, alimento destinado apenas a escravos e a animais. “Os portugueses plantam milho para a mantença de cavalos, galinhas, porcos e escravos da Guiné”, segundo o viajante Gabriel Soares de Souza (1587). Com leite de coco, açúcar e farinha desse milho, a que chamavam “fubá”, iam nascendo novas receitas. Depois, todas elas, adotadas também pela casa-grande. Angu – que originalmente levava caldo de peixe ou miúdos de boi, engrossado com farinha de sorgo. “É fazendo cozer o fubá na água, sem acrescentar sal, que se faz uma espécie de polenta grosseira, que se chama angu e que constitui o principal alimento dos escravos”, escreveu o cientista francês Auguste Saint-Hilaire (1816). Também mungunzá, canjica, pamonha e cuscuz.

Muitos desses escravos, com o tempo, foram alforriados. Alguns deles continuaram aqui, sobrevivendo com tabuleiros equilibrados na cabeça, vendendo comidas nas ruas – como abará, acaçá, acarajé, arroz e feijão de coco, canjica, mocotó, pamonha, vatapá. Outros acabaram repatriados. E levaram, ao lado da paz de quem volta às raízes, também jeitos diferentes de fazer antigas receitas – ainda hoje chamadas, por seus descendentes, “comida de brasileiro”.

Bolo de Fubá
Bata 3 ovos, 4 xícaras de leite, 1 xícara de queijo parmesão ralado, 1 xícara de coco ralado, ½ xícara de fubá de milho, 2 xícaras de açúcar, 1 colher de sopa de manteiga, 3 colheres de sopa de trigo e 1 colher de sopa de fermento em pó, no liquidificador. Asse em forma untada com manteiga, em forno quente.

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